quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Os poemas abaixo compõem Bomba-relógio (2003). Um poema se perdeu, e a ele, cujos versos finais memorizei, dediquei o livro.

"... quando deito a cabeça ao travesseiro:

bainha de muitas adagas."

Canto do Desertor

Deixai que as bestas digladiem
e suas vísceras banhem a areia.
Deixai que as pombas voem em círculos
e suas asas permaneçam brancas.
Deixai a Morte se fartar, cantando.
Que em crânios régios, suas mãos se finquem.
Deixai! A sina dos  povos é una
e ao peão só é dado o avançar.
Deixai que as trevas e o luto nos enlacem
na triste noite, na beira do mar.
Os continentes apontados pro espaço:
somos a pólvora, o sangue, 
nada mais.
Deixai!

Burka

Linda mulher de pano.
Será olhos a desértica mulher?
Linda mulher de pano, corre da chuva, foge dos raios!
A linda mulher do povo de pano.
Oculta, inculta, invisível.
Será apenas olhos, essa ciosa mulher?

MOAB

Sombra no céu, verruga no Sol.
Satanás cai pela segunda vez?
É a lança de Deus! A lança de Deus.
E tudo treme, tudo some, e eu também.
A confusão da qual me escondo é ruidosa.
Por mais que eu desvie, é inútil...
é só uma questão de tempo, 
até eu ser alvejado, encontrado, abalroado...
mas não cesso: o fado suplanta o fardo.
Coberto por tiros e morrendo, 
jorrando poesia
pelos buracos das balas.
A noite nunca termina.
A noite não é criança alguma.
O único som que me chega aos ouvidos
é o de meu estômago, perdido no vale,
uivando para a lua.

Guernica

Chorei nos braços de minha mãe.
Ela me negou seu carinho,

não beijou minha testa,
não cantou pra eu dormir.
Minha mãe era só os braços.
Tenho vontade de amarelo,
mas tudo é preto.
Tenho saudade da gaita,
mas tudo é explosão.
Sinto fome e sinto sede,
mas tudo é pedra e veneno.
Minha boca procura beijos
e encontra ossos.
Espero pelo amanhã, 
e tudo é ontem.
Tenho tudo a minha volta,
e tudo é nada.
Certeza é ação.
A faca é uma dúvida.
A facada é a verdade.
Acompanho a passos largos
toda turbulência.
Travo conflitos e encarcero entre  parênteses
(as divergências).
Sei que meu quarto é pequeno, e que só tem
uma janela...
aberta, enquanto venta e anoitece.
Geralmente, não estou em casa.
Teu olho direito vaza azeite quente,
no cerco de tua entrincheirada boca.
Os soldados vestem branco e nenhuma paz.

Quanto mais eu luto, mais me arrebento contra as cargas
do panzer que é tua língua.

Os soldados se pintam
com meu sangue
no zíper aberto do meu lábio murcho.


Impassível e indiferente, meu umbigo assiste a tudo.
Autista inconformado por saber-se um buraco
que já foi corda.
Arte pura, grudada no asfalto.
Cheira mal,
veste mal,
desafina.
É incrível, satisfazer os sentidos 
com sua singularidade.
A cidade ácida, turbulenta
e linda...
olhares se cruzam e se repelem,
enquanto andamos pelos fios desta teia,
sem saber quando se é mosca,
nem quando se é aranha.
Tenho tintas e rabiscos,
falta-me uma tela, e tenho pressa.
Imagens de fumaça e ódio, turvas, abstratas.
Tenho elegias na ponta da língua...
e a ponta de uma faca, na garganta.
Tomam meus pensamentos
e minhas questões.
Apropriam-se de meus versos íntimos.
Meus últimos universos sofrem
com a chuva de meteoros
e eu apenas sorrio.
Tremo, só de pensar.
Tremo, pra que haja vida.

Tremor é medo em movimento.

A Terra treme: teme e tem insônia.
Mas quem quer dormir?
A Criação ainda não acabou.
Um soluço...
a paisagem ganha luz estroboscópica.
Mais um soluço, e a jura vira medo.
Um copo d'água, e a boca vira um mundo:
o medo morre afogado
e a jura entra na Arca de Noé.

Dicionário Antunes

Pólvora - o sol que devora
Margem - o abismo da folha
Pluma - o pássaro mudo
Gelo - o choro em pedaços
Roupa - a pele da pele
Tinta - o poeta que sangra
Coração - o surdo do peito
Rato - o dedo da ratoeira
Desabafo - o monólogo do ombro
Mão - a aranha pianista
Barco - o jornal que navega
Bala - o doce que mata
Banco - o ladrão paralítico
Cacto - o pé-de-alfinete
Gota - o teto que chora
Morte - chamada a cobrar

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Os poemas abaixo compõem Sombras e Tempo (2001)
Sou o fim de uma estrada - 

andarilhos tombam
a poucos metros de mim.
A sobriedade retorna - 
traz o chão de volta à minha face
e o peso a meus pés.
Traça sob minha pele rios desesperados
que rodam todo meu corpo
e deságuam em lugar nenhum.

O Mar de Minas

As ondas têm nomes gravados com sal.
São cavalos trotadores - vontades em ação.

As ondas, mestre, não dormem, em meus sonhos.
Escavam o que arrostam. Corroem e lapidam.
Estão longe, mas ameaçam.
Orfeu está morto. 
O mar, desde então, nunca mais repousou.
O preço da escolha é sempre favorável à morte.
Vida é escolha - ausência, presença.

Vivos são mortos em potencial.
Enxerga a chaga e não vê sangue.
Do peito aberto, angústia - fumaças não tragadas.
Há quem diga que é trabalho braçal.
No sétimo dia, descansarei.
Minha vida sopra a sua, sem fazer alarde.
É o vento que você barra, ao fechar a janela. 
A brisa fria que entra pela fresta da porta e gela seu sono.
É o intruso que espalha o que você organizou em cima da mesa, antes de sair pra tomar café.
É o ar em movimento.
Move moinhos, destelha  casas e corre encanado em você.
Só efeitos.
Você nunca me vê, mas sabe quando eu estou perto.
Fico aqui com minha vaidade
meus olhos tristes crepusculares.

Meu lar é vazio e quieto
um gato ronda no porão trancado, 
sem achar brecha pra sair.

Minha tristeza é sozinha
e acalentada por uma canção
de alguém que nem sabe que existo.
Sou a sequela do mundo,
entre as baixas,
entre as baías.
Não me descrevo - minha visão não me pertence.
Sou a sequela dos povos, não flor que nasce no podre.
Célula sem núcleo, a passar os impulsos das horas.

Sou a sequela da vida: fio condutor perdido
entre as horas que passam por mim.

(meu tempo acabou)
A crueldade toma a frente
e sorve todos os fragmentos
dum ser que
rês
pira.
Armadas e secas as estrelas...
rondam os céus, essas assombrações.
Fingem reger, fingem o brilho.
Vidas perdidas que, por culpa do tempo,
pulsam a morte nos destinos terrenos.
Passei da hora, 
perdi o trem.
Não pude antecipar
o que ontem parecia tão perto.
Segui medos e distrações,
e terminei por não começar.

Greve

Há algo aqui, que me astigmatiza.
Fontes que não brotam e calam
o começo das criações.
Cruzamentos que não se encontram,
e passos que não se seguem.
Trago pensamentos embrulhados e quentes...

e tenho que voltar amanhã.
Em alguma vivenda perdida,
um balanço balança sozinho,
desenhando na paisagem uma cantilena
sem óleo.
Em volta, as flores e as abelhas conversam.

Quem brinca no balanço é o vento:
criança que brinca e não carrega
as coisas que toca.