Resolvi selecionar, dentre poemas escritos no período de 1996 a 2005, aqueles que gostaria de ver publicados, originalmente dispostos em seis livros: Apóstolo do Vazio (1996-1999) Arrebóis (2000) Sombras e Tempo (2001) Bomba-Relógio (2002-2003) Primeira Viagem (2004) Período Suspeito (2005-2006) A partir disso, todo material se encontra publicado em www.primeira-viagem.blogspot.com
domingo, 30 de setembro de 2012
A vida passa pelos anos
como uma festa regada a critérios e indecisões.
A esmo, esmolam, nas rodas dançantes,
as suposições mal-trajadas,
quase nunca convidadas.
O relógio, maestro de braços ávidos,
rege a orquestra bem posta ao centro,
visível já a partir da entrada:
as cordas – naipe de copas
metais – naipe de espadas.
Pesadelo
Território inimigo,
ruína de um sonho antigo
na manhã coberta de nuvens.
Às pencas despencam cruzes,
a morte a beber o mar.
É o repúdio celeste
temendo a fome e a peste,
a guerra que queima o solo,
o sol que brinca nos corpos,
o sal que tempera o ar.
É a chaga que nunca descansa,
o trem que embala a criança,
caindo no precipício.
O fim que arrebenta o início
no braço do rio a sangrar.
Quadro
Eu espero que o sino bata
à porta, o vento desiste.
Eu espero que o sino bata
e a tarde termine o livro.
Eu espero que o sino bata
e as almas trafeguem limpas,
mas o sacristão morreu
e a tarde congelada hiberna
ao lado de uma aquarela.
Bala perdida
A explosão conforta.
Tudo precisa de tempestade.
(mesmo onde é frágil o que sonha;
mesmo onde é pouco o que é falho).
O abrigo é uma fraude.
Em todo tempo há segundo.
(mesmo quando as flores se revoltam;
mesmo quando a briga não termina).
A derrama pasteja a missão.
O homem é seu vínculo com a verdade.
(mesmo se quem passa paga a conta;
mesmo se quem morre tem vontade).
Diário
Organizou as bandejas sobre a mesa.
(pensava em pratos voadores)
Molhou a garganta com spray.
(há dias não tinha notícias)
Triturou os quadros no liquidificador.
(dor de cabeça e um telefonema – era engano)
Jogou pôquer com o periquito e o jogou da
janela.
(pássaros deveriam voar)
Cruzou dois remos atrás da porta
(Dom João VI é só um esqueleto)
Morreu de fome sentada à mesa,
velas acesas,
pensava que os trigais eram infinitos.
Canção do Carrasco
Cada um com seu destino – eu, mapa rasgado.
Cada um carrega uma cruz – eu, dados
viciados.
Um por todos e todos por um – eu, por nada me
levanto.
Cada cabeça uma sentença – eu limpo o
machado.
Hóspede
Mais indomável que a força das ondas
e um tanto menos indecifrável
que a fronteira do universo –
um trunfo para quem sabe se aproveitar disso
e, assim, se faz desconhecer.
Mais intolerável que a ferida na criança
e menos, muito menos intergaláctico
que as ondas do pulsar –
um rádio para quem, à noite,
zela pela casa alheia,
ao tempo que se sente em casa,
ao menos por aquela noite.
Arrocco
Sou uma sombra dos tempos passados
e a luz do futuro.
Causa de poucos, ódio de muitos
e nenhuma pessoa.
Um jogo de luz e trevas
a ausenciar a mudança de foco,
protegendo o rei
na fortaleza inimiga.
Inspiração
Corre um vento louco
pelas avenidas da cidade,
dando rasantes sobre os chapéus
dos desavisados.
Corre esse cavalo maluco,
procurando por todos os cantos,
largando espuma por onde passa.
Ele entra pelas portas das lojas,
pelas janelas indiscretas
e sai pra rua outra vez.
Então, como um míssil teleguiado,
como uma flecha viciada,
ele me encontra, enquanto olho pro céu
e estoura no meu peito distraído
para dar a luz a esse poema.
A órbita e o cálice
Transito entre os fios
da urdidura eterna –
o regime semi-aberto do tempo.
A aranha desliza na minha direção
e pergunta se quero vinho.
(perto de mim, outros como eu)
Não é preciso crime ou perdão;
Aqui as escolhas são simples:
tinto ou branco,
seco ou suave
e, de preferência,
à temperatura ambiente.
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