Os poemas abaixo compõem Bomba-relógio (2003). Um poema se perdeu, e a ele, cujos versos finais memorizei, dediquei o livro.
"... quando deito a cabeça ao travesseiro:
bainha de muitas adagas."
Resolvi selecionar, dentre poemas escritos no período de 1996 a 2005, aqueles que gostaria de ver publicados, originalmente dispostos em seis livros: Apóstolo do Vazio (1996-1999) Arrebóis (2000) Sombras e Tempo (2001) Bomba-Relógio (2002-2003) Primeira Viagem (2004) Período Suspeito (2005-2006) A partir disso, todo material se encontra publicado em www.primeira-viagem.blogspot.com
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Canto do Desertor
Deixai que as bestas digladiem
e suas vísceras banhem a areia.
Deixai que as pombas voem em círculos
e suas asas permaneçam brancas.
Deixai a Morte se fartar, cantando.
Que em crânios régios, suas mãos se finquem.
Deixai! A sina dos povos é una
e ao peão só é dado o avançar.
Deixai que as trevas e o luto nos enlacem
na triste noite, na beira do mar.
Os continentes apontados pro espaço:
somos a pólvora, o sangue,
nada mais.
Deixai!
e suas vísceras banhem a areia.
Deixai que as pombas voem em círculos
e suas asas permaneçam brancas.
Deixai a Morte se fartar, cantando.
Que em crânios régios, suas mãos se finquem.
Deixai! A sina dos povos é una
e ao peão só é dado o avançar.
Deixai que as trevas e o luto nos enlacem
na triste noite, na beira do mar.
Os continentes apontados pro espaço:
somos a pólvora, o sangue,
nada mais.
Deixai!
Burka
Linda mulher de pano.
Será olhos a desértica mulher?
Linda mulher de pano, corre da chuva, foge dos raios!
A linda mulher do povo de pano.
Oculta, inculta, invisível.
Será apenas olhos, essa ciosa mulher?
Será olhos a desértica mulher?
Linda mulher de pano, corre da chuva, foge dos raios!
A linda mulher do povo de pano.
Oculta, inculta, invisível.
Será apenas olhos, essa ciosa mulher?
MOAB
Sombra no céu, verruga no Sol.
Satanás cai pela segunda vez?
É a lança de Deus! A lança de Deus.
E tudo treme, tudo some, e eu também.
Satanás cai pela segunda vez?
É a lança de Deus! A lança de Deus.
E tudo treme, tudo some, e eu também.
Guernica
Chorei nos braços de minha mãe.
Ela me negou seu carinho,
não beijou minha testa,
não cantou pra eu dormir.
Minha mãe era só os braços.
Ela me negou seu carinho,
não beijou minha testa,
não cantou pra eu dormir.
Minha mãe era só os braços.
Teu olho direito vaza azeite quente,
no cerco de tua entrincheirada boca.
Os soldados vestem branco e nenhuma paz.
Quanto mais eu luto, mais me arrebento contra as cargas
do panzer que é tua língua.
Os soldados se pintam
com meu sangue
no zíper aberto do meu lábio murcho.
Impassível e indiferente, meu umbigo assiste a tudo.
Autista inconformado por saber-se um buraco
que já foi corda.
no cerco de tua entrincheirada boca.
Os soldados vestem branco e nenhuma paz.
Quanto mais eu luto, mais me arrebento contra as cargas
do panzer que é tua língua.
Os soldados se pintam
com meu sangue
no zíper aberto do meu lábio murcho.
Impassível e indiferente, meu umbigo assiste a tudo.
Autista inconformado por saber-se um buraco
que já foi corda.
Dicionário Antunes
Pólvora - o sol que devora
Margem - o abismo da folha
Pluma - o pássaro mudo
Gelo - o choro em pedaços
Roupa - a pele da pele
Tinta - o poeta que sangra
Coração - o surdo do peito
Rato - o dedo da ratoeira
Desabafo - o monólogo do ombro
Mão - a aranha pianista
Barco - o jornal que navega
Bala - o doce que mata
Banco - o ladrão paralítico
Cacto - o pé-de-alfinete
Gota - o teto que chora
Morte - chamada a cobrar
Margem - o abismo da folha
Pluma - o pássaro mudo
Gelo - o choro em pedaços
Roupa - a pele da pele
Tinta - o poeta que sangra
Coração - o surdo do peito
Rato - o dedo da ratoeira
Desabafo - o monólogo do ombro
Mão - a aranha pianista
Barco - o jornal que navega
Bala - o doce que mata
Banco - o ladrão paralítico
Cacto - o pé-de-alfinete
Gota - o teto que chora
Morte - chamada a cobrar
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
O Mar de Minas
As ondas têm nomes gravados com sal.
São cavalos trotadores - vontades em ação.
As ondas, mestre, não dormem, em meus sonhos.
Escavam o que arrostam. Corroem e lapidam.
Estão longe, mas ameaçam.
Orfeu está morto.
O mar, desde então, nunca mais repousou.
São cavalos trotadores - vontades em ação.
As ondas, mestre, não dormem, em meus sonhos.
Escavam o que arrostam. Corroem e lapidam.
Estão longe, mas ameaçam.
Orfeu está morto.
O mar, desde então, nunca mais repousou.
Minha vida sopra a sua, sem fazer alarde.
É o vento que você barra, ao fechar a janela.
A brisa fria que entra pela fresta da porta e gela seu sono.
É o intruso que espalha o que você organizou em cima da mesa, antes de sair pra tomar café.
É o ar em movimento.
Move moinhos, destelha casas e corre encanado em você.
Só efeitos.
Você nunca me vê, mas sabe quando eu estou perto.
É o vento que você barra, ao fechar a janela.
A brisa fria que entra pela fresta da porta e gela seu sono.
É o intruso que espalha o que você organizou em cima da mesa, antes de sair pra tomar café.
É o ar em movimento.
Move moinhos, destelha casas e corre encanado em você.
Só efeitos.
Você nunca me vê, mas sabe quando eu estou perto.
Sou a sequela do mundo,
entre as baixas,
entre as baías.
Não me descrevo - minha visão não me pertence.
Sou a sequela dos povos, não flor que nasce no podre.
Célula sem núcleo, a passar os impulsos das horas.
Sou a sequela da vida: fio condutor perdido
entre as horas que passam por mim.
(meu tempo acabou)
entre as baixas,
entre as baías.
Não me descrevo - minha visão não me pertence.
Sou a sequela dos povos, não flor que nasce no podre.
Célula sem núcleo, a passar os impulsos das horas.
Sou a sequela da vida: fio condutor perdido
entre as horas que passam por mim.
(meu tempo acabou)
Greve
Há algo aqui, que me astigmatiza.
Fontes que não brotam e calam
o começo das criações.
Cruzamentos que não se encontram,
e passos que não se seguem.
Trago pensamentos embrulhados e quentes...
e tenho que voltar amanhã.
Fontes que não brotam e calam
o começo das criações.
Cruzamentos que não se encontram,
e passos que não se seguem.
Trago pensamentos embrulhados e quentes...
e tenho que voltar amanhã.
domingo, 30 de setembro de 2012
A vida passa pelos anos
como uma festa regada a critérios e indecisões.
A esmo, esmolam, nas rodas dançantes,
as suposições mal-trajadas,
quase nunca convidadas.
O relógio, maestro de braços ávidos,
rege a orquestra bem posta ao centro,
visível já a partir da entrada:
as cordas – naipe de copas
metais – naipe de espadas.
Pesadelo
Território inimigo,
ruína de um sonho antigo
na manhã coberta de nuvens.
Às pencas despencam cruzes,
a morte a beber o mar.
É o repúdio celeste
temendo a fome e a peste,
a guerra que queima o solo,
o sol que brinca nos corpos,
o sal que tempera o ar.
É a chaga que nunca descansa,
o trem que embala a criança,
caindo no precipício.
O fim que arrebenta o início
no braço do rio a sangrar.
Quadro
Eu espero que o sino bata
à porta, o vento desiste.
Eu espero que o sino bata
e a tarde termine o livro.
Eu espero que o sino bata
e as almas trafeguem limpas,
mas o sacristão morreu
e a tarde congelada hiberna
ao lado de uma aquarela.
Bala perdida
A explosão conforta.
Tudo precisa de tempestade.
(mesmo onde é frágil o que sonha;
mesmo onde é pouco o que é falho).
O abrigo é uma fraude.
Em todo tempo há segundo.
(mesmo quando as flores se revoltam;
mesmo quando a briga não termina).
A derrama pasteja a missão.
O homem é seu vínculo com a verdade.
(mesmo se quem passa paga a conta;
mesmo se quem morre tem vontade).
Diário
Organizou as bandejas sobre a mesa.
(pensava em pratos voadores)
Molhou a garganta com spray.
(há dias não tinha notícias)
Triturou os quadros no liquidificador.
(dor de cabeça e um telefonema – era engano)
Jogou pôquer com o periquito e o jogou da
janela.
(pássaros deveriam voar)
Cruzou dois remos atrás da porta
(Dom João VI é só um esqueleto)
Morreu de fome sentada à mesa,
velas acesas,
pensava que os trigais eram infinitos.
Canção do Carrasco
Cada um com seu destino – eu, mapa rasgado.
Cada um carrega uma cruz – eu, dados
viciados.
Um por todos e todos por um – eu, por nada me
levanto.
Cada cabeça uma sentença – eu limpo o
machado.
Hóspede
Mais indomável que a força das ondas
e um tanto menos indecifrável
que a fronteira do universo –
um trunfo para quem sabe se aproveitar disso
e, assim, se faz desconhecer.
Mais intolerável que a ferida na criança
e menos, muito menos intergaláctico
que as ondas do pulsar –
um rádio para quem, à noite,
zela pela casa alheia,
ao tempo que se sente em casa,
ao menos por aquela noite.
Arrocco
Sou uma sombra dos tempos passados
e a luz do futuro.
Causa de poucos, ódio de muitos
e nenhuma pessoa.
Um jogo de luz e trevas
a ausenciar a mudança de foco,
protegendo o rei
na fortaleza inimiga.
Inspiração
Corre um vento louco
pelas avenidas da cidade,
dando rasantes sobre os chapéus
dos desavisados.
Corre esse cavalo maluco,
procurando por todos os cantos,
largando espuma por onde passa.
Ele entra pelas portas das lojas,
pelas janelas indiscretas
e sai pra rua outra vez.
Então, como um míssil teleguiado,
como uma flecha viciada,
ele me encontra, enquanto olho pro céu
e estoura no meu peito distraído
para dar a luz a esse poema.
A órbita e o cálice
Transito entre os fios
da urdidura eterna –
o regime semi-aberto do tempo.
A aranha desliza na minha direção
e pergunta se quero vinho.
(perto de mim, outros como eu)
Não é preciso crime ou perdão;
Aqui as escolhas são simples:
tinto ou branco,
seco ou suave
e, de preferência,
à temperatura ambiente.
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